Márcia Elisa Teté Ramos e Jean Vieira Ramos

O FILME “1917”: OS RELATOS PARA UMA CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS HISTÓRICAS

 

Este texto apresenta uma pesquisa realizada no âmbito do Programa Nacional de Bolsas em Iniciação Científica sob orientação de Márcia Elisa Teté Ramos. Parte do pressuposto que a pesquisa e o ensino são dimensões interdependentes. Entende que a aprendizagem histórica, ou seja, a construção do conhecimento histórico escolar se utiliza, guardadas as proporções, da mesma metodologia da ciência histórica.

 

O Cinema como fonte histórica tem sido objeto de pesquisa em diversas áreas e os especialistas vêm discutindo a relação entre a imagem animada, a realidade e como os efeitos das imagens permanecem na memória. Esse diálogo da relação entre o Cinema e a História na academia é discutido há mais de 70 anos e entre os cineastas desde a década de 1910 com D. W. Griffith e o seu filme O Nascimento de Uma Nação (VALIM, 2011, p. 41).

 

Na história, Marco Ferro é considerado um expoente no que diz respeito à discussão sobre o uso dos filmes como documentos históricos desde a década de 60, superando a ideia de que o filme seja reflexo ou retrato da realidade, mas uma fonte que deve ser interpretada como qualquer outra fonte (FERRO, 1992).

 

Nas recentes pesquisas sobre História e Cinema, três alternativas são possíveis: se relaciona os estudos de teoria do cinema; a crítica histórico-cinematográfica e a história do cinema. As análises críticas que visam perceber como o filme trata a história direcionam-se para as formas fílmicas de narrar e as temporalidades na reflexão da realidade e as interpretações dessa realidade, as verdades que são criadas através dessa realidade e as interpretações que nascem separadas da realidade (VALIM, 2011).

 

Como as narrativas fílmicas, na atualidade, parecem encontrar maior público do que a historiografia especializada, torna-se material que pode incidir no pensamento histórico de uma sociedade. No caso, enciclopédias, livros de consumo destinados ao grande público, revistas de consumos vendidas em bancas etc., vem cumprindo a tarefa de “ensinar” ao público sobre a história de forma extraescolar. A historiografia especializada só recentemente vem se preocupando em fazer chegar a História ao grande público. Por isso a necessidade de se analisar como os filmes vem tratando de temas históricos (FERREIRA, 2016). Contudo, a escola ainda é o espaço por excelência para promoção da aprendizagem histórica, por isso a proposta do emprego do filme em sala de aula como alternativa para que o sujeito aprendente entenda como se interpreta uma evidência histórica.

 

Como emprega a metodologia da história para desenvolver um letramento histórico, uma “lógica” específica do conhecimento histórico, abre-se a três componentes: 1) evidências históricas; 2) conceitos históricos e 3) empatia histórica.

 

Para exemplificar a mobilização de tais componentes da metodologia da história, consideramos o filme “1917” como mote para a exploração em sala de aula na Escola Básica. Para dar conta do primeiro movimento, o uso de evidências, propomos a tabela produzida por Francisco César Ferraz (1999) adaptada conforme a natureza da fonte histórica a ser interpretada, já que autor se volta para o uso de imagens. Não apenas a natureza da fonte histórica deve ser levada em conta, mas o ano/série, se Ensino Fundamental II ou Ensino Médio. O primeiro passo desta tabela seria: PROCEDÊNCIA: Quem fez? Onde? Quando? Para quem? Onde ficou? Houve alguma forma de exposição pública? Como foi sua recepção? Qual era a posição do(s) autor(es) da imagem na sociedade? E do(s) seu(s) destinatário(s)? É dedicada a alguém? No caso do filme, poderíamos destacar que é notável o fato de que o filme vem atingindo um grande público, especialmente após o Oscar de 2019. O título original do filme é 1917, tem a duração de 117 minutos com o seguinte elenco: Andrew Scott (Lieutenant Leslie), Bennedict Cumberbatch (Colonel Mackenzie), Colin Firth (General Erinmore), Dean-Charles Chapman (Lance Corporal Blake), George MacKay (Lance Corporal Schofield), Mark Strong (Captain Smith), Richard Madden (Lieutenant Blake), Adam Hungill (Private Atkins), Adrian Scarborough (Major Hepburn), Claire Duburcq (Lauri), Daniel Mays (I) (Sergeant Sanders), Jamie Parker (I) Lieutenant Richards e Nabhaan Rizwan (II) (Sepoy). É uma produção de 2019, sendo considerado o gênero como “Guerra”, produzido pelos seguintes países: Estados Unidos da América, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. Produzido pelo estúdio Universal Pictures, sob direção de Sam Mendes. O filme foi indicado em 10 categorias no Oscar de 2019, sendo as principais categorias: Melhor filme, Melhor direção e Melhor fotografia.

 

O próximo passo seria a FINALIDADE, que se entrecruza com a procedência: Por quem foi feita? Para quem? Sua finalidade foi bem sucedida? Seguiu um padrão anterior ou foi original? Qual sua importância para a sociedade em que se originou? O filme foi inspirado nos relatos que o diretor Sam Mendes ouviu de seu avô que serviu na guerra e apresenta os soldados nas trincheiras no norte da França colocando em ação os soldados Schofield e Blake que estão encarregados de entregar uma carta urgente para outro batalhão e cancelar a missão que vai evitar o massacre dos soldados. Sam Mendes começou no teatro e passou para a direção de cinema ainda na década de 90 do século passado. Fez vários filmes, mas nenhum comparável a “1917”, entre muitos: o romance American Beauty (1999); a adaptação de HQ, Road to Perdition (2002); o romance Revolutionary Road (2008); um filme que entrelaça vários personagens de terror, Penny Dreadful (2014); aventura e suspense Spectre (2015). Como vemos, Sam Mendes é bem flexível nas suas opções sobre gênero fílmico.

 

Sobre TEMÁTICA: Qual o título? É um tema original ou seguiu modelo anterior? Existem temáticas secundárias? Como se articula(m) com a principal? Existem pessoas retratadas? Quem é/são? Quais são seus atributos? Que estão fazendo? Como se vestem? Existe alguma hierarquização no(s) tema(s)? Quais são os objetos retratados? Como eles aparecem? Qual a sua função dentro do tema? Pertencem às pessoas retratadas? Quais os atributos da paisagem? Relacionam-se com as pessoas retratadas? Relacionam-se com os objetos retratados? Qual é o tempo retratado (dia/noite; calor/frio; estação do ano; sol/claridade/névoa/chuva? Existe indício de tempo histórico retratado? Que práticas sociais o conteúdo iconográfico é capaz de abordar? O filme “1917” conta a história de dois soldados britânicos Schofield e Blake que são enviados para uma missão em um campo de batalha para levar uma mensagem que pode salvar a vida de milhares de soldados de um regimento de Devonshire durante a batalha de Passchendaele, na Bélgica. As circunstâncias do evento se passam em um panorama verídico: a Grande Guerra que transcorreu de 1914 a 1918 e teve como fato central o continente europeu, principalmente, o norte da França. A temporalidade retratada reporta a vivência de 24 horas (começando em uma sexta-feira, 6 de abril de 1917 e terminando no sábado, no dia seguinte), pois volta-se para a narrativa de um breve cotidiano no contexto da Primeira Guerra. O jovem inicia sua jornada para entregar uma carta junto com um amigo, que no começo do filme morre com uma facada de um piloto alemão. Em seu caminho, o jovem soldado encontra uma mulher francesa (do lugar) com um bebê que não é dela, da qual de imediato tem um grande afeto. Encontra também o inimigo em uma cidadezinha destruída (Ecoust, na França). Enfrenta até mesmo um quase afogamento e finalmente encontra o coronel para quem é destinado a carta que continha informações de guerra e fez parar uma batalha.

 

A importância do filme é mostrar para o(a) estudante que para além das grandes narrativas, existe uma pequena escala da história, chamada de micro história, que remete ao cotidiano, às vivências de pessoas comuns. Mas este(a) estudante também precisa saber do CONTEXTO histórico, mesmo para que entenda o cotidiano para o qual o filme se volta. Entre as causas da guerra incluem-se as políticas imperialistas estrangeiras das grandes potências da Europa, como o Império Alemão, o Império Austro-Húngaro, o Império Otomano, o Império Russo, o Império Britânico, a Terceira República Francesa e a Itália. Lembrando que é considerado como estopim da Primeira Guerra Mundial o assassinado do arquiduque Francisco Ferdinand, o herdeiro da dinastia dos Habsburgos, na cidade de Saravejo na Bósnia no dia 28 de junho de 1914, provocando a reação do Império Austro-Húngaro e a política de alianças e a entrada de outros países no conflito, acabou gerando uma sucessão de acontecimentos. O conflito envolveu as grandes potências de todo o mundo, que se organizaram em duas alianças opostas: os aliados (com base na Tríplice Entente entre Reino Unido, França e Rússia) e os Impérios Centrais, a Alemanha e a Áustria-Hungria. Originalmente a Tríplice Aliança era formada pela Alemanha, Áustria-Hungria e a Itália; mas como a Áustria-Hungria tinha tomado a ofensiva, violando o acordo, a Itália não entrou na guerra pela Tríplice Aliança. Estas alianças reorganizaram-se (a Itália lutou pelos Aliados) e expandiram-se com mais nações que entraram na guerra (MACMILLAN, 2014).

 

ESTRUTURA TÉCNICO-FORMAL: Qual é o suporte (tela, parede, rocha, cartão, papel, chapa fotográfica, pôster, etc.)? Quais foram as técnicas e os materiais utilizados? Houve inovação ou utilizaram-se técnicas e/ou materiais conhecidos? Como se estrutura sua composição? Qual o papel desempenhado pela distribuição das cores, dos tons e das luminosidades? Existe alguma hierarquização formal? O aspecto formal intensifica ou enfraquece o entendimento temático? Qual o estilo adotado? Houve intenção de aproximação coma realidade? Existe alguma articulação entre o estilo e a sociedade retratada ou procedência do autor? “1917” ressalta uma dinâmica focada no ritmo acelerado, remetendo à vivência imediata do sujeito. Pelo modo de produzir o filme, é possível ver que existe o propósito de trazer ao público um relato de soldado, realizando assim uma leitura de uma dada realidade. Podemos perceber que o relato transposto no filme, comprova que esta guerra foi respaldada em trincheiras (BATISTA, 2015), a juventude dos soldados, os desafios das estratégias adversárias etc. Enquanto estratégia fílmica, utiliza-se do efeito de realidade chamada experiência imersiva, cujo objetivo é fazer com que o participante da ação se sinta parte do que está sendo apresentado e use os seus sentidos para explorá-la. Neste sentido, o filme dá a impressão de um jogo eletrônico ou jogo de realidade aumentada. Com isso, aproxima-se, provavelmente dos códigos culturais do jovem estudante. E mais: se cria uma empatia histórica como forma de se colocar no lugar do Outro. Peter Lee diz que poderíamos substituir a palavra “empatia” por “compreensão”. Mais precisamente: “compreensão histórica”, que não é um sentimento, “Embora envolva o reconhecimento de que as pessoas possuem sentimentos” (LEE, 2003, p. 20).

 

SIMBOLISMO: Existem simbolismos identificáveis? Quais são? Permitem várias interpretações? Havia condições para os coetâneos à imagem identificarem os simbolismos? O(s) autor(es) escreveu(eram) algo a respeito de possíveis interpretações da imagem? Como se articulam os simbolismos com o tema? Como já mencionado, em seus 117 minutos de duração há um único plano-sequência – é como se o longa fosse uma cena gigantesca, sem cortes - na verdade, existe apenas um corte na cena (FELIX, 2020). O relato de um soldado (o avô do diretor) cimenta a narrativa do filme “1917”, no sentido de configurar-se em um “indício” para a narrativa histórica, construindo assim, uma micro história, com personagens comuns, mas sujeitos da história (REVEL, 1998). O relato, ou os relatos sobre a guerra, são fontes orais (testemunhos) ou escritas (cartas, diários etc.) que dimensionam o cotidiano, as vivências, a vida prática (ARTHUR, 2011)

 

Ao mesmo tempo em que tem acesso pelo filme “1917” ao cotidiano da Primeira Guerra, o(a) estudante, tem condições de ultrapassar o tema geralmente posto no livro didático ou no currículo em voga ao problematizar a fonte histórica (ou evidência), construindo conceitos históricos estruturais que são constitutivos da cognição histórica, isto é, da natureza do conhecimento histórico, entre outros: fontes e evidências, explicação histórica, imaginação histórica, interpretação, narrativa, etc. Tais conceitos também são ligados à noção temporal, como mudança, permanência, evolução e transição (LEE, 2001). Sobretudo, tem acesso a um conceito básico, o de empatia, como compreensão histórica de um dado contexto, de lugares e temporalidades diferentes.

 

Este processo de problematização não é tarefa individual. O debate, a discussão, o confronto de perspectivas/narrativas, “o movimento entre sujeitos diferentes”, também devem integrar a construção do aprendizado histórico, na medida em que implica na “intersubjetividade discursiva, em uma relação aberta de comunicação racional-argumentativa” (RÜSEN, 2010, p.  48).

 

Referências biográficas

 

Márcia Elisa Teté Ramos, docente do curso de História e de Pedagogia EaD da Universidade Estadual de Maringá, doutorado pela UFPR e pós-doutorado pela USP. Coordenadora do ProfHistória UEM.

 

Jean Vieira Ramos, Programa Nacional de Bolsas em Iniciação Científica - História pela Universidade Estadual de Maringá.

 

Referências bibliográficas

 

ARTHUR, Max. Vozes Esquecidas da Primeira Guerra Mundial. Uma nova hist´poria contada por homens e mulheres que vivenciaram o primeiro grande conflito do século XX. Trad. Marco Antonio de Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2011.

 

BATISTA, Liz. Batalha de trincheiras marcou a Primeira Guerra. Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,batalha-de-trincheiras-marcou-a-primeira-guerra,11389,0.htm  Acesso em 11 de abril de 2021.

 

FERRAZ, Francisco César Uma agenda alternativa para o debate sobre o uso escolar das fontes históricas. In: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. R. III Encontro Perspectivas do Ensino de História. Curitiba: Aos Quatro Ventos. 1999.

 

FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema, educação e história pública: Dimensões do filme Xica da Silva. In MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, 348p.

 

FELIX, Sihan. 1917 é um filme de guerra que carrega a urgência de um mundo em paz. Crítica. 2020. Disponível em https://canaltech.com.br/cinema/critica-1917-159487/ Acesso em 20 de março de 2021.

 

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1992.

 

LEE, Peter. “Nós fabricamos carros e eles tinham que andar a pé”: compreensão das pessoas do passado. In: BARCA, I. (Org.). Educação histórica e museus. Braga: Centro de Investigação em Educação; Instituto de Educação e Psicologia; Universidade do Minho Actas das Segundas Jornadas Internacionais de Educação Histórica. Braga - Portugal: Centro de Investigação em Educação/Instituto de Educação e Psicologia/Universidade do Minho. 2003.

 

LEE, Peter. Progressão da compreensão dos alunos em História. In: BARCA, I. Perspectivas em educação histórica. Actas das Primeiras Jornadas Internacionais de Educação Histórica. Braga - Portugal: Centro de Investigação em Educação/Instituto de Educação e Psicologia/Universidade do Minho, 2001.

 

MACMILLAN, Margaret. A Primeira Guerra Mundial. Brasil: Globo Editora, 2014.

 

RÜSEN, Jörn. In SCHMIDT; Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (Org.). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

 

VALIM, Alexandre Busko. Da realidade à representação: uma introdução à pesquisa sobre as relações entre Cinema e História. In ANDRADE, Solange Ramos de; ROLIM, Rivail Carvalho (org.). Introdução à pesquisa histórica. Maringá: EDUEM, 2011. 

4 comentários:

  1. Boa tarde. Parabéns pelo texto. Vc não acha que em alguns casos, é muito difícil de encontrar fontes sobre a Micro-história, no caso do filme, sobre a atuação de alguns soldados?

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  2. Lívia Diana Rocha Magalhães25 de maio de 2021 às 16:05

    Boa tarde, gostaria de parabenizar e reafirmar a relevância em abordar novas possibilidades para o ensino de história, o texto, sem dúvida traz orientações metodológicas centrais para que possamos pensar nossas práticas. É nesse sentido que gostaria de saber de vocês sobre a experiência prática que tiveram na implementação desse projeto nas turmas. Gostaria portanto, de saber o pouco mais sobre a aprendizagem empírica dos estudantes nas aulas,
    agradeço
    Lívia Diana Rocha Magalhães

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  3. Obrigado pelo texto e reflexões! Sempre me utilizei de filmes nas aulas! Vejo que muitos colegas se utilizam dos filmes de forma acessória e complementar! Na proposta do texto ficam claros os caminhos e a importância da mudança! Mas pergunto, mais praticamente como estimular docentes a ampliarem e qualificarem os trabalhos de ensino através do cinema? OBGD

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  4. Excelente contribuíção, principalemente sobre a dimensão do simbolismo. Vocês acreditam que o trabalho com techos de filmes na sala de aula pode ser encarado como um trabalho de fontes históricas?

    Arnaldo Martin Szlachta Junior

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