Elizete Gomes Coelho Dos Santos

                               DIDÁTICA, ENSINO DE HISTÓRIA E TEMPORALIDADE

 

A pesquisa que desenvolvi no mestrado profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA/UFRJ) sobre livros didáticos para o ensino médio e o conceito tempo é fruto da reflexão sobre a minha prática docente ao longo de minha trajetória profissional. Ao me debruçar sobre temporalidade em âmbito historiográfico, considerei as críticas realizadas pelos Annales à História tradicional, o conceito de narrativa segundo Paul Ricouer, categorias cunhadas por Reinhart Koselleck para análises temporais e a concepção de regime de historicidade delineada por François Hartog. Neste artigo, teço considerações acerca deste conceito em produções inseridas nos campos do Ensino de História e da Didática da História.

 

Os saberes históricos acadêmico e escolar possuem especificidades epistemológicas e a função do componente curricular História na educação básica não condiz com a formação de historiadores em miniatura. Primeiramente, apresento apreciações de pesquisadores do campo Ensino de História acerca desta temática.

 

Durval Albuquerque Júnior destaca a importância de desnaturalizar o tempo e reflexioná-lo na qualidade de uma construção social, cultural e narrativa ao afirmar que ensinar História é efetuar marcas temporais pois sempre implica ao professor, adotar, mesmo que de forma inconsciente, certa ordenação dos tempos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016, p. 24).

 

A problematização temporal na docência é sugerida pelo autor, através de questões,

tendo como exemplo: Quais seriam as concepções de tempo apresentadas ao aluno? Majoritariamente, de que maneira temporalidade é abordada e como impacta o discente? Como o livro didático adotado se organiza temporalmente e como pode ser reordenado, em sua utilização? (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016, p. 23). Contanto que concepções de tempo são problematizadas no ensino de História, proporciona ao aluno a experiência de sair de seu tempo, o que contribui, segundo Albuquerque Júnior (2016, p. 25), na preparação do discente para lidar com a alteridade, a diferença e a mudança.

 

História, processo histórico, tempo, sujeito histórico, cultura, historicidade dos conceitos e cidadania. Holien Bezerra designa estes conceitos como fundamentais para o ensino de História na escolaridade básica pois, auxiliariam os alunos saídos da escola em sua vivência como cidadãos; categorias estas que foram se constituindo pela prática dos historiadores e que as propostas pedagógicas não podem negligenciá-las (BEZERRA, 2010, p. 41).

 

O autor assinala, reportando-se ao conceito tempo, a importância de levar o aluno a compreender as temporalidades e seus ritmos diversos, responsáveis pelas formas de organização social e seus conflitos no decorrer da História, que é constituída pelo conjunto complexo de vivências humanas (BEZERRA, 2010, p. 44).

 

Os conteúdos históricos, de acordo com Bezerra, seriam meios para a aquisição de capacidades reflexivas de tempo para além de noções de passado, presente e futuro, como o estabelecimento de relações entre continuidade e ruptura, permanências e mudanças/transformações, sucessão e simultaneidade (BEZERRA, 2010, p. 38).

 

A partir das considerações do autor, é possível afirmar que o professor de História que se preocupa constantemente com os sentidos de temporalidades movidos em sala de aula, torna esta prática aliada no exercício diário de se evitar anacronismos, ou seja, analisar determinado tempo/espaço a partir de parâmetros que não condizem com a sua historicidade.

 

Em publicações voltadas para professores de História atuantes na educação básica, Circe Bittencourt, Maria Auxiliadora Schmidt, Marlene Cainelli, Marieta de Moraes Ferreira e Renato Franco preconizam tempo como conceito relevante para o ensino de História.

 

Bittencourt, no livro “Ensino de História: fundamentos e métodos”, após considerações acerca do tempo vivido, que condiz com a experiência individual e com o biológico; do tempo concebido, que varia de acordo com as culturas; do tempo métrico, que possibilita a construção de periodizações; e das noções de tempo construídas por Fernand Braudel, com os seus diferentes ritmos e níveis, indica que a temporalidade histórica não pode ser sinonímia de tempo cronológico e que “o uso de datas precisa estar vinculado a uma busca de explicação sobre o que vem antes e depois, sobre o que é simultâneo ou ainda sobre o tempo de separação de diversos fatos históricos” (BITTENCOURT, 2004, p. 212). Portanto, as datações são pontos referenciais, que necessitam de sentidos a eles atribuídos.

 

A autora enfatiza que apreender duração seria um dos aspectos imprescindíveis para as reflexões temporais pois, através dela, são compreendidas as mudanças, transformações e permanências (BITTENCOURT, 2004, p. 215).

 

Schmidt e Cainelli (2010) constroem uma concepção do que seria ensinar História na educação básica através do papel da apreensão de temporalidades, que proporcionam ao aluno se conceber tal como sujeito histórico e com isto, conseguir que ele reconheça outros sujeitos em diferentes tempos: aprender história é identificar experiências, valores e práticas sociais (SCHMIDT; CAINELLI, 2009, p. 106).

 

De acordo com as autoras, o ensino de História prevê que as noções temporais de sucessão, duração, simultaneidade, mudança e permanências sejam trabalhadas com os alunos. Estas percepções são construídas através de uma operação múltipla que ocorre, a título de exemplo, pelo processo de escolarização e pelo livro didático e assistem a compreensão não apenas das relações entre uma época histórica e outra, como também das múltiplas temporalidades que podem coexistir nas sociedades (SCHMIDT; CAINELLI, 2009 p. 100).

 

Ao destacar que diferentes são as formas de medir temporalidade e indicar os calendários como importantes fontes de referência, Ferreira e Franco expõem tempo como o elemento que dá sentido às ações dos indivíduos e que possibilita localizar os acontecimentos numa percepção de presente, passado e futuro, enfatizando que “não é possível analisar nada em termos históricos sem levarmos em consideração a época em que determinado fato aconteceu” (FERREIRA; FRANCO, 2009, p. 73).

 

Para os autores, a forma específica que cada sociedade concebe seu tempo, que é responsável por situar “a ação humana dentro de uma sucessão diferenciada de acontecimentos” (FERREIRA; FRANCO, 2009, p. 72), está diretamente relacionada a sua organização. Fortemente marcado pela irreversibilidade, multiplicidade e não linearidade, o tempo histórico é compreendido por eles através de fragmentos selecionados de Claude Lévi-Strauss, Jean Chesneaux e Reinhart Koselleck, que auxiliam na compreensão de durações e interrupções temporais.

 

Os autores mencionados acima convergem não só ao citar o modelo quadripartite francês de divisão da História, construído no século XIX, como algo a ser superado, visto que favorece interpretações eurocêntricas, que excluem uma gama de possibilidades, como também se reportam à não linearidade do tempo histórico e às múltiplas durações temporais (acontecimento, estrutura e conjuntura) introduzidas por Fernand Braudel.

 

Estas publicações favorecem a interpretação de que aproximar conteúdos programáticos da História a realidade discente implica na realização de manobras temporais de idas e vindas. Cada qual a sua maneira, estes autores militam por um ensino de História que considere plurais visões de mundo, tarefa esta que pode ser potencializada por reflexões em torno do conceito tempo porém, parece haver silenciamentos ao pensá-lo no Ensino de História.

 

Ao refletir acerca desta questão, Ana Maria Monteiro e Carmen Gabriel mencionam que esta resistência a refletir temporalidades neste campo de pesquisa se dá pela “dificuldade epistemológica que a reelaboração didática pressupõe” (GABRIEL; MONTEIRO, 2014, p. 37). Estas autoras, que analisam o processo de produção dos conhecimentos escolares no âmbito da disciplina História através da estrutura narrativa do conhecimento histórico, destacam a importância de tornar objeto de estudos, a transposição didática dos conteúdos eleitos para serem aprendidos/lecionados. Para tal, diálogos entre os campos da Epistemologia, da História e do Currículo favoreceriam a elaboração de referenciais teórico-metodológicos que auxiliariam na compreensão da produção destes conteúdos escolares, que são também determinados por políticas de currículo.

 

As reflexões acerca do conceito tempo não podem excluir produções historiográficas e do Ensino de História, da mesma maneira que se faz imprescindível a inclusão de discussões em torno da aprendizagem histórica.

 

Lana Mara Siman aponta tempo como o aspecto primordial da experiência humana, suporte do seu pensamento e de sua ação (SIMAN, 2005, p. 110). Ao destacar a coexistência temporal como característica do tempo histórico, construído não somente por simultaneidades, mas também por sucessões e durações, a autora aposta que somente é na oferta às crianças de oportunidades de tomarem consciência da historicidade de sua própria vida e de relacioná-las à historicidade de sua coletividade, que se dá o desenvolvimento de estruturas mentais e atitudes que permitirão inteligibilidade ao complexo conceito tempo (SIMAN, 2005, p. 119).

 

Preocupado com a formação do pensamento histórico que permita ao discente abordar o estudo da História com autonomia, possibilitando-o construir sua própria representação do passado através da contextualização de fatos históricos, Antoni Fernández indica que a formação de competências para tal somente é possível através de um ensino baseado em problemas históricos, “para hacer posible o real la construcción de la conciencia histórico-temporal, las competencias de representación de la historia, la imaginación histórica y la interpretación de las fuentes” (FERNÁNDEZ, 2010, p. 51).

 

Ao indicar a periodização, a simultaneidade, as análises de mudança e continuidade

das próprias experiências do passado como categorias para se pensar tempo, o autor enfatiza a existência de possibilidades temporais e a importância de se realizar desconstruções, uma vez que o passado poderia ter sido de outra forma. Aliada neste processo, a narrativa é concebida por Fernández, ao dialogar com Paul Ricouer e Jörn Rüsen, como responsável em conferir uma ordem temporal, uma hierarquia e um significado aos fatos históricos, sendo diversas as opções de interpretação da História (FERNÁNDEZ, 2010, p. 44).

 

A linguagem temporal é considerada por Joan Blanch e Antoni Fernández, peça fundamental na narrativa histórica, uma vez que para a construção da História, é necessário ordenar e classificar temporalmente os acontecimentos, habilidade que se desenvolve desde as primeiras fases da infância. Ao referir-se a complexidade em torno do conceito tempo, os autores sublinham além das categorias indicadas acima, as relações tempo-espaço; a diversidade de experiências e representações históricas, estabelecendo diálogo pertinente com Reinhart Koselleck; a irreversibilidade, a relatividade e os ritmos temporais; os tempos vivido, percebido e concebido, em diálogo com Jean Piaget e a superação da perspectiva meramente cronológica, em uma abordagem transdisciplinar do tempo (BLANCH; FERNÁNDEZ, 2010, p. 284).

 

Apesar de a escola se constituir enquanto espaço profícuo para alunos formarem estruturas temporais cada vez mais funcionais e ricas, Blanch e Fernández indicam uma lacuna investigativa ao afirmar que “se sabe muy poco de las relaciones entre as vivencias sobre la temporalidad y el aprendizaje del tiempo histórico” (BLANCH; FERNÁNDEZ, 2010, p. 285). Os autores afirmam que a aprendizagem do tempo histórico pode contribuir para a estruturação qualitativa do conhecimento sobre História, se alguns aspectos forem levados em conta, como:

 

“a) La escuela debe superar la enseñanza de una historia de museo, que representa el tiempo histórico como una acumulación de datos y fechas.

b) El aprendizaje del tiempo histórico debe basarse em las relaciones entre pasado, presente y futuro, a nivel personal y social.

c) La enseñanza de la historia ha de partir del tiempo presente y de los problemas del alumnado, para poder formar em valores democráticos (Evans, 1996; Audigier, 2003).

d) Se deben cuestionar las categorías temporales que se presentan como categorías naturales, cuando son construcciones sociales.

e) No sólo debemos enseñar una determinada periodización, sino que también debemos enseñar a periodizar (Ferro, 1991).

f) La cronología debe enseñarse relacionada com una serie de conceptos temporales básicos, como el cambio, la duración, la sucesión, los ritmos temporales o las cualidades del tiempo histórico (Stow y Haydn, 2000).

g) Los conceptos temporales actúan como organizadores cognitivos, tanto en los acontecimientos de la vida cotidiana como em el proceso de comprensión de la historia (Matozzi, 1988).

h) El pensamiento temporal está formado por una red de relaciones conceptuales, donde se sitúan los hechos personales o históricos de manera más o menos estructurada (Matozzi, 2002)” (BLANCH; FERNÁNDEZ, 2010, p. 285-286).

 

Neste artigo, a temporalidade, sustentáculo do conhecimento histórico, foi discutida através de expoentes do Ensino de História e da Didática da História a fim de que fosse esmiunçado, problematizado, sem a pretensão de dar conta de sua complexidade. De maneira geral, foi exposto que a categoria tempo “envolve uma percepção abstrata, relacional, com diferentes centros de perspectiva e ativa dimensões conceituais distintas de sucessão, duração, simultaneidade e, (…) nos projeta em direção à compreensão da memória coletiva e histórica” (MIRANDA, 2005, p. 202).

 

Discussões em torno do que e como ensinar em História precisam levar em conta a problematização do conceito tempo e a questão das múltiplas temporalidades, esta última favorece a construção do sentimento de empatia, pois coopera no aprendizado da existência de muitas formas de ser e, de modo consequente, para a visibilidade do diverso.

 

 

Referências biográficas

 

Mestra Elizete Gomes Coelho dos Santos, professora da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ).

 

Referências bibliográficas

 

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas temporais através do ensino de História”. In: GABRIEL, Carmen Teresa. MONTEIRO, Ana Maria. MARTINS, Marcus Leonardo Bonfim (orgs.). Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de História. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.

 

BEZERRA, Holien Gonçalves. “Ensino de História: conteúdos e conceitos básicos”. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2010.

 

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.

 

BLANCH, Joan Pagés. FERNÁNDEZ, Antoni Santisteban. “La enseñanza y el aprendizaje del tiempo histórico em la educación primaria”. In: Cad. Cedes, vol. 30, n. 82, p. 281-309, set.-dez. 2010.

 

FERNÁNDEZ, Antoni Santisteban. “La formación en competencias de pensamiento histórico”. In: Clío & Asociados. La Historia Enseñada. Número 14. 2010. p. 34-56.

 

FERREIRA, Marieta de Moraes. FRACO, Renato. Aprendendo História: reflexão e ensino. São Paulo: Editorado Brasil, 2009.

 

GABRIEL, Carmen Teresa. MONTEIRO, Ana Maria. “Currículo de História e Narrativa: desafios epistemológicos e apostas políticas”. In: ARAÚJO, Cinthia Monteiro de. COSTA, Warley. GABRIEL, Carmen Teresa. MONTEIRO, Ana Maria (orgs.). Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2014.

 

MIRANDA, Sonia Regina. “Reflexões sobre a compreensão (e incompreensões) do tempo na escola”. In: ROSSI, Vera Lúcia Sabongi de. ZAMBONI, Ernesta. Quanto tempo o tempo tem! Educação, Filosofia, Psicologia, Cinema, Astronomia, Psicanálise, História… Campinas: Editora Alínea, 2005.

 

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2009.

 

SIMAN, Lana Mara de Castro. “A Temporalidade Histórica como Categoria Central do Pensamento Histórico: Desafios para o Ensino e a Aprendizagem”. In: ROSSI, Vera Lúcia Sabongi de. ZAMBONI, Ernesta (orgs.). Quanto tempo o tempo tem! Educação, Filosofia, Psicologia, Cinema, Astronomia, Psicanálise, História… Campinas: Editora Alínea, 2005.

 

6 comentários:

  1. Saudações, cara colega. Conclui o ProfHistória recentemente e, como você, pesquisei as noções de tempo e temporalidade, mas a partir dos usos de filmes. As questões levantadas no texto despertam para a importância da apropriação das categorias temporais na educação básica, deixando evidente que a aprendizagem histórica inevitavelmente perpassa o desenvolvimento da competência de problematizar mudanças e permanência. A maioria dos livros didáticos de História aprovados pelo PNLD, no entanto, são organizados a seguir uma cronologia tradicional que conduz a apresentação dos objetos de conhecimento seguindo a ordenação passado-presente. Em tua opinião, como as coleções que se utilizam de uma abordagem temática contribuiriam para que os alunos tivessem uma percepção do tempo menos linear?
    Josemar de Medeiros Cruz - josemardmc@yahoo.com.br

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    1. Outra proposta organizacional que problematize a perspectiva linear, progressiva e eurocêntrica sempre é válida. Obrigada pelo seu comentário.

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  2. Gostaria de saber, com base no seu artigo, como que limitar a influência das grandes personalidades e do governo em relação aos seus interesses próprios na manipulação no Ensino de História e da Didática da História.
    Att. Miguel Ângelo dos Santos Demétrio.

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    1. Miguel Ângelo, fortalecer a nossa categoria (professores de História) e nossas representações para uma ampla participação no debate de estabelecimento de políticas públicas me parece ser um caminho promissor.

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  3. Olá Elizete Gomes Coelho Dos Santos, boa noite. Parabéns pelo texto! Minha questão articula teoria e didática: como você diferencia os conceitos de tempo, temporalidade e historicidade - de modo claro e acessível - de modo que, quando evocados em sala de aula, o aluno saiba que não são a mesma coisa?
    Michelle dos Santos

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