Elinete Carvalho Linhares

FONTES ORAIS E ENSINO DE HISTÓRIA: POSSIBIIDADES METODOLÓGICAS NA  EDUCAÇÃO BÁSICA


Este artigo tem como objetivo apresentar a mudança historiográfica ocorrida a partir da Escola dos Annales, que ocasionou em uma maior utilização da História Oral pelos historiadores e, pretende também mostrar a relação possível entre fontes orais e o ensino de História na educação básica, dando enfoque a algumas possibilidades metodológicas que podem ser realizadas em sala de aula.

 

Introdução

 

Compreender como as fontes orais podem ser utilizadas no ensino de história da educação básica é uma tarefa importante pois diz respeito à prática docente e às inovações que esta deve ter para contribuir efetivamente para o processo de ensino e aprendizagem dos alunos.

Diante desse pressuposto, é preciso fazer alguns apontamentos sobre a História Oral buscando evidenciar as transformações que ela proporciona tanto para a História ciência quanto para a História disciplina escolar.

A História Oral e as fontes orais tiveram um desenvolvimento a partir da Escola dos Annales (1929), que possibilitou uma Nova História, onde não deveria mais interessar aos historiadores apenas documentos oficiais que diziam respeito à História Política, devendo a história tradicional ser substituída por uma história mais humana, ou seja:

“A expansão da tipologia das fontes históricas – a multiplicação das fontes abertas aos historiadores – constituiu-se por isso mesmo em mais uma das notas importantes do acorde programático dos Annales” (BARROS, 2012, p.140).

Percebe-se então uma preocupação em ampliar as possibilidades de fontes para uso do historiador, para que assim ele não se prendesse apenas a uma história tradicional política.  Dessa forma essa expansão documental será defendida também pela terceira geração do movimento dos Annales, pois para Jacques Le Goff (1978):

“A História Nova ampliou o campo do documento histórico; ela substitui a história de  Langlois e Seignobos, essencialmente baseada em textos e documentos escritos, por uma  história fundamentada numa ampla variedade de documentos escritos de todos os tipos, documentos iconográficos, resultados de escavações arqueológicas, documentos orais  etc. uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, quando se trata  de um passado mais longínquo, vestígios de pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto são  documentos de primeira ordem para a História Nova” (apud BARROS, 2012, p.141).

É visível então nas ideias de Le Goff a importância dos documentos orais para essa História Nova, onde o relato oral deixa de ser algo sem valor e passa a ser considerado de primeira ordem, pois revela faces da história por meio dos indivíduos que a vivem cotidianamente.

Mas por outro lado há uma crítica com relação a esses relatos orais, pois eles são conseguidos por meio do uso da memória e esta faz parte do jogo do poder, e:

“Se a memória faz parte do jogo do poder, se autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos, a história, como todas as ciências, tem como norma a verdade” (LE GOFF, 1990, p.32).

Ou seja, com a possibilidade de um maior uso da História Oral advinda com a Escola dos  Annales foi colocado em questão se o uso da memória individual ou coletiva não poderia acarretar em um jogo de poder, de intencionalidades, mas é justamente aí que entra o papel do historiador com a sua objetividade, devendo evitar ao máximo a parcialidade.

Selau (2004, p.221) nos diz que:

“A história oral pode ser entendida como uma metodologia capaz de contribuir para esta atividade de análise de memórias por intermédio das entrevistas realizadas com pessoas de um determinado grupo, envolvido com temas de interesse para a pesquisa em desenvolvimento pelo profissional em história”.

Portanto, um certo consenso é perceptível referente ao fato de a história oral ter essa capacidade de resgatar e analisar memórias individuais e coletivas, memórias estas que se mostram cada vez mais importantes para a construção do conhecimento histórico.

Dessa forma, para Pollak (1992, p.8):

“Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é.  Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita”. O que podemos apreender da fala de Pollak é que a fonte oral está em igualdade com a fonte escrita, não devendo ser desconsiderada por utilizar a memória, pois a documentação escrita também é construída socialmente e carrega intenções, o que deve predominar sempre é a crítica às fontes.

E quanto aos objetivos que podem ser alcançados com o uso das fontes orais, Thompson afirma que:

“A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais e o mundo exterior; e na produção da história – seja em livros, museus, rádio ou cinema – pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras” (THOMPSON apud TAVARES, 2013, p.8).

A partir da afirmativa de Thompson de que a história oral pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, e após essas breves reflexões sobre a ascensão da história oral e sua relação com a memória para a produção de fontes orais, ou seja a dimensão da História ciência, é importante focarmos agora na dimensão do ensino.

 

Ensino de história e as fontes orais

Bittencourt (2008) faz um estudo bem detalhado sobre o ensino de história, seus fundamentos e métodos, perpassando pela discussão de “disciplina” e “matéria”, pelas diferenças entre história da educação básica e história do ensino superior e, ainda aborda como a História era ensinada de acordo com cada período histórico e, ao abordar sobre os currículos mais recentes, nos diz que:

“De acordo com os currículos mais recentes, os conteúdos escolares correspondem à integração dos vários conhecimentos adquiridos na escola. [...] Os conteúdos escolares incluem, por exemplo, aprendizagens de novas linguagens, desde a norma culta da língua ao domínio do significado das imagens de revistas em quadrinhos, de propagandas ou filmes. Em História, não se entende como apreensão de conteúdo apenas a capacidade dos alunos em dominar informações e conceitos de determinado período histórico, mas também a capacidade das crianças e jovens em fazer comparações com outras épocas[...].  Os conteúdos escolares correspondem também às formas de apresentação de determinado saber escolar, as quais podem ser por escrito ou pela oralidade, via debates, atividades em grupos, apresentação de uma peça teatral, etc.” (BITTENCOURT, 2008, p.107).

Fica explícito então, que os novos currículos propõem uma integração dos conteúdos escolares com novas linguagens como por exemplo, revistas em quadrinhos, filmes e, um fator de destaque é quanto à forma de apresentação do saber escolar que pode ser pela oralidade, ou seja, percebe-se uma importância dada a oralidade, sendo esta, portanto, fundamental na construção do conhecimento histórico.

Quanto às propostas curriculares de História, Bittencourt (2008) destaca que suas características gerais dizem respeito por exemplo ao princípio de que o aluno é sujeito ativo no processo de aprendizagem e que é necessária a aceitação de que o aluno possui um conhecimento prévio sobre os estudos históricos, advindos através de sua história de vida e, isto deve ser incorporado ao processo de aprendizagem.

É evidente então, uma clareza com relação ao papel ativo que o aluno deve ter em seu processo de aprendizagem e de que é preciso respeitar os conhecimentos acumulados com sua vivência em sociedade. Tais pressupostos abrem caminho para a introdução da História Oral no ensino de História da educação básica, pois ela permite por exemplo que o aluno tenha autonomia ao realizar uma entrevista com um familiar, isso claro se o professor fizer uma articulação precisa entre o conhecimento histórico escolar e conhecimento histórico individual e coletivo presente no contexto em que o estudante está inserido.

É perceptível então que:

“A partir da década de 80 importantes transformações se apresentaram no ensino brasileiro de História, passando a se incorporar gradualmente as fontes orais como ‘ferramenta' possível de ser utilizada" (NÓBREGA; SOLDERA; SENNA, 2009, p.126).

Esse marco temporal relaciona-se com o processo de redemocratização do ensino, que possibilitou então essa implementação de novas práticas nos currículos escolares. E, ao se debruçar sobre memória e história local, Bittencourt (2008) afirma que:

“A história local tem sido indicada como necessária para o ensino por possibilitar a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre presente nos vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho e lazer –, e igualmente por situar os problemas significativos da história do presente" (p.169).

É exatamente relacionada à história local que a história oral deve ser utilizada pelo professor, pois a elaboração de fontes orais por meio de conversas, entrevistas, com pessoas de sua comunidade, permite que o estudante consiga apreender as questões da história do presente e ainda perceber que o passado se faz presente no seu cotidiano.  Ademais, a autora destaca que a memória é a base da identidade, e é por ela que se chega à história local.

Partindo dessas considerações, Maria Auxiliadora Schimidt e Marlene Cainelli (2009) vêm nos informar que:

“[...] um dos objetivos do ensino da História consiste em fazer o aluno ver-se como partícipe do processo histórico” (p.161).

Ainda acrescentam que:

“Outro aspecto diz respeito à etapa em que o aluno e professor, pelo diálogo com o passado e o presente, identificam as possibilidades de intervenção e participação na realidade em que vivem" (p.162).

Ou seja, esse segundo aspecto, de acordo com Schimidt e Cainelli (2009), pode ser correspondido quando é proposto um trabalho com a oralidade, onde esse trabalho com a história oral refere-se a uma metodologia de pesquisa baseada em fontes orais. Ainda segundo as autoras, essas fontes orais registram a experiência vivida por meio de depoimentos de um indivíduo ou de vários.

Schimidt e Cainelli (2009, p.162) afirmam também que:

“A opção pelo trabalho com a oralidade no ensino da História precisa considerar que a reflexão acompanha todo o processo, e não ocorre somente a posteriori. Ademais, é relevante entender que o trabalho com a oralidade consiste numa fonte diferenciada para captação de informações, a qual está muito relacionada com o estudo da história local".

Com relação aos cuidados que deve se ter ao trabalhar com fontes orais, as mesmas autoras contribuem de forma significante quando nos dizem que: “Nesse sentido, pode-se conhecer a maneira como alguém ou algum grupo vivenciou determinados acontecimentos resgatando sua subjetividade, sem confundi-la com fatos objetivos" (SCHIMIDT; CAINELLI, 2009, p.164).

Portanto, o cuidado é necessário, pois nem sempre os fatos rememorados por alguém em uma entrevista são objetivos. Daí que é fundamental fazer o cruzamento com outras fontes, estabelecendo um diálogo para a construção da narrativa histórica. E, com relação as possibilidades concretas no ensino da História, as autoras Schimidt e Cainelli (2009, p.164) nos dão algumas ideias fundamentais:

“O ensino da História, ao transpor ou recriar a metodologia da história oral, pode fazê-lo  por meio de projetos tais como: autobiografias orais; história oral da localidade; livro de  recordações; investigação da origem de nomes dos espaços locais; história oral da escola;  história oral de construções locais; história oral de pessoas idosas da localidade; história  oral de pessoas idosas com base em uma temática; história oral de pessoas idosas, com o  objetivo de recuperar a cronologia de fatos da localidade; história oral do aluno; história  oral de pessoas originais que vivem na localidade; história oral de familiares (genealogias  familiares, arquivos familiares, história oral e fotografias históricas); história oral da  indústria local; história oral das mulheres, dos migrantes, dos imigrantes; história oral de  um acontecimento local importante”.

Através dessas inúmeras possibilidades citadas pelas autoras é possível fazer o aluno tornar-se sujeito ativo da sua própria história, pois ele vai ter um contato direto com suas raízes familiares, comunitárias, podendo assim entender que a História é algo presente em sua vida, no seu dia a dia.

Dessa forma, o professor ao desenvolver tais atividades com seus alunos deve antes de  tudo definir a metodologia a ser empregada, se o trabalho será em grupo ou individual,  fazer pesquisa bibliográfica sobre o tema que será abordado nas entrevistas, elaborar  juntamente com os estudantes um melhor roteiro para a entrevista e, após tudo isso passar  para a fase de recolhimento dos relatos, onde por fim deve ser feita uma análise dos dados  obtidos e uma reflexão para, por último, os resultados serem compartilhados.

 

Considerações finais

A partir de todo o exposto, ficou explícito que a Escola dos Annales trouxe mudanças  significativas para a História ciência, com novas abordagens possíveis de serem feitas pelo historiador, além de uma ampliação do conceito de fonte, onde a História Oral e sua  produção de fontes orais tornaram-se extremamente importantes para a construção do  conhecimento histórico, para a escrita da história do presente e também para o resgate de  memórias que haviam de certa forma, sido deixadas de lado, enfim as mudanças foram  claramente positivas, pois contribuíram para que o historiador tenha hoje outras  alternativas e não fique preso somente a história de fatos políticos.

E quanto à História disciplina, também são visíveis mudanças significativas, pois os novos currículos de História compreendem que o aluno deve ser partícipe de seu processo de ensino e aprendizagem e, nada melhor para isso do que o professor incorporar à sua prática o uso da História Oral em sala de aula, onde o estudante terá várias possibilidades e, uma delas é o aprendizado da história local. Portanto, as fontes orais são fundamentais no ensino de História na educação básica.

 

Referências biográficas

Elinete Carvalho Linhares é graduanda em Licenciatura Plena em História, pelo Centro de Estudos Superiores de Caxias, da Universidade Estadual do Maranhão-CESC/UEMA.

 

Referências bibliográficas

 

BARROS, José D'Assunção. Teoria da História: vol.V. A Escola dos Annales e a Nova História. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos.  São Paulo: Cortez, 2008.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.

NÓBREGA, Felipe; SOLDERA, Lisiane; SENNA, Adriana. “A história oral como prática no ensino de história”. Ágora, Santa Cruz do Sul, v.15, n.1, p.126-136, jan./jun.  2009.

POLLAK, Michael. “Memória e identidade social". Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, n.10, 1992, p.200-212.

SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar história. 2.ed. São Paulo: Scipione, 2009.

SELAU, Maurício da Silva. “História Oral: uma metodologia para o trabalho com fontes orais”. Revista Esboços: histórias em contextos globais, Florianópolis, SC, v.11, n.11, p.217-223, 2004.

TAVARES, Sebastiana Aparecida. “A história oral como estratégia no ensino de história”. XII JORNADA DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS, 2013.

4 comentários:

  1. Diante do cenário atual de pandemia (Covid-19), momento em que o aluno está vivenciando todo o processo de ensino-aprendizagem dentro de seu próprio lar, como a oralidade na relação com a família pode contribuir para o ensino de História?

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  2. Elinete Carvalho Linhares26 de maio de 2021 às 21:46

    Como coloca Bittencourt (2008) é preciso aceitar que o aluno possui um conhecimento prévio sobre os estudos históricos advindo de sua história de vida. Pode-se compreender então que esse conhecimento perpassa pelas relações familiares.
    Com relação às possibilidades metodológicas de uso das fontes orais Schmidt e Cainelli (2009) nos falam que podem ser desenvolvidos trabalhos de história oral de familiares por meio de arquivos pessoais, genealogias, fotografias, álbuns de família etc. Portanto, ao pensarmos o cenário atual do ensino de história praticamente em sua totalidade de forma remota e o aluno vivenciando esse processo dentro de seu próprio lar, é viável que o professor use isso a favor de suas aulas, ou seja, pode propor atividades que façam os alunos dialogarem com seus familiares, descobrirem nos recantos de seus lares fotografias antigas, procurem conhecer por meio de seus parentes melhor a história local, história de seu bairro. Sendo assim, creio que apesar de ser um momento complexo, a história oral pode ser utilizada para melhor proveito do ensino de história.

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  3. Cordial saludo. ¿Qué elementos se deben tener en cuenta al interior del aula de clase a la hora de abordar las tensiones entre Memoria(s) e Historia al momento de trabajar con fuentes orales?

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    1. Elinete Carvalho Linhares27 de maio de 2021 às 14:18

      Olá, agradeço pela pergunta. É importante que se leve em conta a necessidade de fazer uso de fontes diversificadas, como por exemplo, ao realizar uma entrevista o estudande pode ir buscar fotografias, documentos escritos, jornais etc., sobre o período ou assunto pesquisado que o ajude na sua narrativa. Do mesmo modo o professor deve proceder, pois como você mesmo enfatiza em sua pergunta, há uma tensão entre história e memória, pois muitos historiadores acreditam que a memória pode ser parcial e carregada de intenções. Mas Pollak (1992) deixa bem claro que tanto a memória como qualquer outra documentação é socialmente construída e o que deve prevalecer é a crítica da fonte.

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