Aruanã Antonio dos Passos

 RECORDAR KANT: A HISTÓRIA COSMOPOLÍTICA COMO APRENDIZAGEM HISTÓRICA

 

                                                                                                                                   “A consciência histórica é constituição de sentido                                                                                                                     sobre a experiência do tempo, no  modo de uma memória                                                                                                                                que vai além dos limites de sua própria vida prática”                                                                                                                                                                                   (RÜSEN, 2010, p. 104).


Partimos do princípio de que a narrativa é o elemento estruturante dos sentidos do passado no presente, como aponta Jörn Rüsen. Assim, este trabalho procura analisar a proposição de Immanuel Kant (1724-1808) de uma história cosmopolítica como uma “reconstituição mental da mudança temporal” (RÜSEN, 2001, 155). Consideramos o conflito entre natureza e liberdade em Kant como a tensão necessária, mas não imprescindível para a possibilidade de uma História. Dessa forma, a proposta kantiana de uma História Universal em uma perspectiva cosmopolítica pode contribuir para uma definição narrativa da História?

O sistema filosófico de Immanuel Kant, pode ser sintetizado pela busca investigativa e de análise de duas grandes questões das quais se desdobram outras. A primeira se refere ao conhecimento, suas condições, limites e possibilidades. A segunda se refere à ação humana (moral). Em outras palavras, “tratava-se de saber não o que o homem conhece ou pode conhecer a respeito do mundo e da realidade última, mas do que deve fazer, de como deve agir em relação a seus semelhantes, de como proceder para obter a felicidade ou alcançar o bem supremo” (CHAUÍ, 1999, p. 6). Este breve texto tentará dentro de seus limites, tecer algumas considerações de extrema importância para a compreensão da forma com que Kant arquiteta a possibilidade da história e como esta se relaciona intrinsecamente com as possibilidades do homem de conhecer e a questão moral de “como devemos agir”.

Afetado por David Hume não podemos desconsiderar em grande parte a filosofia de Kant é uma resposta às críticas do criador do empirismo as pretensões de qualquer certeza científica. Para Hume a ciência não era capaz de demonstrar a existência de uma relação necessária entra causa e efeito. Ainda, segundo Hume, não somos capazes de provar que uma causa específica ira produzir um efeito específico. “O que chamamos de causa e efeito é algo que a mente, através do hábito, impõe a nossas percepções sensoriais” (PERRY, 2002, p.379). Segundo Kant a mente não seria essa “tabula rasa” que recebe passivamente as impressões dos sentidos, mas um instrumento ativo, capaz, autossuficiente que organiza essas impressões dos sentidos. Assim, “a mente pode coordenar um fluxo caótico de sensações porque contem uma lógica inerente que lhe é própria; está equipada com diversas categorias de compreensão, inclusive causa e efeito” (PERRY, 2002, p.379). Causa e efeito então, seriam com as demais categorias da mente responsáveis pela certeza do conhecimento científico, desse modo “o mundo físico deve possuir certas características definidas, pois estas se ajustam às categorias da mente” (PERRY, 2002, p.379). O homem (a mente) organiza e sistematiza o mundo e seus fenômenos, em outras palavras o sujeito que conhece se torna mais importante que o objeto em si. Porém, para Kant não podemos conhecer a realidade suprema, porque o nosso conhecimento se limita ao mundo dos fenômenos, as ocorrências naturais. Não podemos conhecer uma coisa-em-si, sua natureza última e real e só conhecemos o que a nossa experiência sensória nos revela. “Assim ao mesmo tempo em que reafirmou a validade da lei científica, Kant também restringiu o alcance da ciência e da razão” (PERRY, 2002, p. 380).

Caberia, dessa forma, questionar o lugar da história-conhecimento neste abrangente sistema filosófico. No entanto, este texto se concentrará no problema posto pela razão do conflito entre liberdade e natureza. Na Ideia de uma História Universal de um Ponto de vista Cosmopolita (2003) o filósofo alemão elabora o conceito de uma história universal segundo o método de uma teoria geral da natureza abordando a história política. Assim:

A história cosmopolítica, segundo Kant, é, portanto, concebida à maneira de um sistema de corpos celestes e sua referência é o modelo astronômico. Mas, a essa unidade que é a história da humanidade, Kant dá uma direção que é a da realização progressiva do direito dos homens. Essa abordagem naturalista da história revela uma tensão interna entre coerção natural e liberdade individual, própria das teses kantianas e suscita a controvérsia entre dois tipos de interpretação das teses kantianas sobre a história (DOSSE, 2003. p.231).

Para Kant, a visão naturalista acaba perpassando a história. Segue neste sentido a Segunda proposição da Ideia de uma História Universal, afirma ela que, “No homem (única criatura racional sobre a Terra) aquelas disposições naturais que estão voltadas para o uso de sua razão devem desenvolver-se completamente apenas na espécie e não no indivíduo” (KANT, 2003, p. 5), ou ainda a Oitava proposição segundo a qual, “pode-se considerar a história a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política (Staatsverfassung) perfeita, como único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposições” (KANT, 2003, p.17). Isso constituiria não uma forma instrumental da realização da moral, mas sim sua concepção final da finalidade, o que desfaz, por exemplo, a interpretação que concebe a “(...) teleologia de Kant como a prefiguração da dialética hegeliana e marxista” (DOSSE, 2003, p.231). Essa leitura que identifica o progresso a uma versão naturalista da história reduz o horizonte pensado por Kant, porque para o filósofo a natureza possui por fim o gênero humano. Isso fica sobressaliente no fato de que ela só pode se exercer segundo a razão e a liberdade. Por isso a resolução do eminente conflito entre razão e liberdade assume importância. Se as “ações humanas”-,como todo outro acontecimento natural, são determinadas por leis naturais universais” (KANT, 2003, p. 3), como conceber que o homem possa fazer sua história? Esse problema é resolvido pelo desejo da natureza da realização do “fim final”, segundo a Quinta proposição, “O maior problema para a espécie humana, a cuja solução a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que administre o direito”,porque, “para assegurar uma sociedade reguladora, o homem encontra então o direito, único capaz de impedir a alteração da liberdade do outro” (DOSSE, 2003, p. 233). A liberdade (poder de ser causa incondicionada de si) não pode ser concretizada porque se envolve com as leis naturais. Um acontecimento qualquer é condicionado a essas leis naturais. Kant ao distinguir fenômeno de coisa-em-si de certo modo resolve o problema da dissonância entre a liberdade e da natureza. Porém, é impossível conhecer qualquer ação humana livre, porque a alma não é livre, mas como coisa-em-si é. Mas não adianta a coisa-em-si ser livre se ela não age em natureza (o conflito entre liberdade e natureza aparentemente acabaria).

A razão em seu interesse prático (a moral) tem por função nos fazer compreender que a liberdade e a natureza, ou melhor, que agindo moralmente faremos o bem, agindo livremente fazemos o bem supremo. A liberdade que dá sentido ao mundo é uma relação com a totalidade desse mundo que ganha uma finalidade última. O que conciliaria então o conflito entre a liberdade e as imposições da natureza, é a moralidade contida na finalidade (bem supremo), o que fica claro na Terceira proposição onde: “A natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo o que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse de nenhuma felicidade ou perfeição senão aquela que ele proporciona a si mesmo, livre do instinto, por meio da própria razão”. (KANT, 2003, p. 6).

Essa finalidade seria inerente ao projeto da natureza viabilizado pela própria razão. Assim o “homem-madeira” exposto por Kant “abusa de sua liberdade em relação a seus semelhantes” (KANT, 2003, p.11. Sexta proposição), não pode seguir uma linha reta apenas pela ação da razão moral. “Como a solução perfeita, é impossível e o equilíbrio é precário, resta defender o caráter aberto da historicidade para um ponto de vista cosmopolítico” (DOSSE, 2003. p.234), ou cosmopolita (cidadão do mundo, o homem que age). Abre-se caminho para compreensão da Sétima proposição: “O problema do estabelecimento de uma constituição civil perfeita depende do problema da relação externa legal entre Estados, e não pode ser resolvido sem que este último o seja” (KANT, 2003, p.12). Kant estabelece um horizonte histórico de espera, que afirma o fim do estado de guerra e a organização política internacional. Todo essa formulação kantiana se concentra na Nona e última proposição, que afirma o seguinte: “Uma tentativa de elaborar a história universal do mundo segundo um plano da natureza que vise à perfeita união civil na espécie humana deve ser considerada possível e mesmo favorável a este propósito da natureza” (KANT, 2003, p.19).

Mas, se não podemos conhecer as coisas-em-si, como poderemos entender e mesmo apreender os desígnios do fim último da natureza? A resposta estaria no fato de que a razão age através da lei moral e a lei moral seria a efetivada pela razão. Assim, se o homem se pergunta “o que devo fazer?”, ele se coloca já frente a sua condição de fim último. A moralidade nestes termos é o que determina que a liberdade do homem possa agir. A lei moral proporciona a ação incondicional, a prática. O agir humano se relaciona com a natureza produzindo história, para Kant enquanto “Gechichte”, na Ideia de Uma História Universal, que se distingue da história relato de fatos empíricos (História). Não à toa, “o ser humano é um dos fenômenos do mundo dos sentidos, e nesta medida também uma das causas naturais cuja causalidade tem que estar sob leis empíricas”. (KANT, 1983. p.277. B574).

Assim, a resolução do conflito entre natureza e liberdade não fundamenta a possibilidade de uma história porque a apesar de a liberdade ser a realização da moral “(…) ainda falta muito para nos considerarmos moralizados. Se, com efeito, a ideia de moralidade pertence à cultura, o uso, no entanto, dessa ideia, que não vai além de uma aparência de moralidade (Sittenähnliche) no amor à honra e no decoro exterior, constitui apenas a civilização” (KANT, 2003, p. 16, Sétima proposição). O obstáculo maior na realização de uma história filosófica (Gechichte), desse destino é a própria organização política dos Estados-nações tendo em vista suas realidades jurídicas e territoriais e suas identidades próprias. A esperança da realização do “fim final” da natureza pela moralidade. E, “embora este corpo político (Staatskörper) por enquanto seja somente um esboço grosseiro, começa a despertar em todos os seus membros como um sentimento: a importância da manutenção do todo; e isto traz a esperança de que, depois de várias revoluções e transformações, finalmente poderá ser realizado um dia aquilo que a natureza tem como propósito supremo, um Estado cosmopolita universal, como o seio na qual podem se desenvolver todas as disposições originais da espécie humana” (KANT, 2003, p.19. Oitava proposição).

 

Encerremos com o apontamento que Hayden White faz sobre Kant. Segundo White: “O velho Kant tinha razão: em suma, somos livres para fazer do passado o que quisermos […] em qualquer modalidade de consciência que seja mais coerente com [nossa] própria aspiração moral e estética”. (WHITE, Apud: JENKINS, 2014, p. 82). Nesse sentido, retomemos a questão inicial. Afinal, a proposta de Kant para uma História Universal passa pela definição também de uma determinada leitura do passado? Como procuramos discutir, no contexto do esclarecimento alemão do século XVIII, contexto de imersão do pensamento e obra kantiana, entendemos a constituição de uma racionalidade histórica indissociável de sua função narrativa, capacidade essa potencial em toda narrativa sobre o passado, característica essa que sempre se encontra sob algum tipo de risco, logo, digna de toda nossa atenção.

 

Referências biográficas

 

Dr. Aruanã Antonio dos Passos, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Câmpus Pato Branco.

 

 

Referências bibliográficas

 

CHAUÍ, Marilena. Vida e Obra. In: KANT. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

DOSSE, François. A História. Bauru/ SP: Edusc, 2003.

JENKINS, Keith. A história refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina. São Paulo: Contexto, 2014.

KANT, Immanuel. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

_______________. Crítica da Razão Pura. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

_______________. Realidade e existência: lições de metafísica: introdução e ontologia. São Paulo: Paulus, 2002.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

RÜSEN, J. Razão Histórica. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.

______________. História Viva. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2010.

TORRES FILHO, R. R. Dogmatismo e Antidogmatismo: Kant na sala de aula. In: Cadernos de Filosofia Alemã, n. 7, p.67-86, 2001.

2 comentários:

  1. Olá Prof. Dr. Aruanã. Tudo bem. Parabenizo o Professor pelas reflexões aqui trazidas e a abordagem do conceito de História Cosmopolítica em Kant. Assim, gostaria de colocar uma breve indagação: tomando por base um conceito de narrativa histórica de J. Rüsen que diz: "[...] A narrativa é, portanto, o processo de constituição de sentido da experiência do tempo." (Obra: Jörn Rüsen e o Ensino de História, 2010, p. 95); como o Professor percebe as relações desse conceito, somado à abordagem da História Cosmopolitica e a deturpação do passado de forma proposital que vemos na atualidade? Muito Obrigado.

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    1. Olá Gerson, tudo bem e com você? Muito obrigado pela leitura e pela sua questão. Se bem entendi, sua pergunta tem duas fronteiras. A primeira relacionando o conceito de Rüsen com a proposta kantiana, e a segunda em torno da “deturpação” do passado atualmente. Sobre a primeira, caberia uma investigação mais demorada sobre a leitura de Kant que Rüsen faz, e nisso não poderei te ajudar nesse momento. Não sou especialista nem em um, nem em outro. A minha proposta foi a de retomar o debate kantiano de uma sociedade cosmopolítica – poderíamos chamar de supranacional – à luz desse preceito de Rüsen, que é de outros autores também, da produção de consciência histórica como atribuição de significado e sentido histórico. A intersecção entre eles, na minha modesta leitura de não especialista, é a percepção de que a consciência histórica é um a priori necessário para a construção e superação dos nacionalismos. Aqui poderíamos estender a discussão para as relações históricas do conhecimento histórico no interior dos nacionalismos no século XVIII e XIX. Agora, numa sequência dessa investigação caberia ainda avaliar as ferramentas necessárias para essa produção de consciência histórica, especialmente no nosso caso brasileiro. Já a sua segunda indagação traz a tona um problema extremamente complexo e que teremos de lidar daqui para o futuro. Minha observação é em torno dessa noção de “deturpação” que você mencionou e vou resumir meu argumento. Colocando na mesa esse contexto que vivemos, a meu ver, é preciso compreender que o espaço público foi invadido por certa perversão (aqui num sentido político no espírito das ideias de Hannah Arendt) do espaço privado, da intimidade, principalmente pelas redes sociais. A consequência imediata é a produção de ruídos e bolhas que tornam o diálogo e a produção de consensos verdadeiros pouco provável. Por outro lado, o conhecimento histórico que se considera científico e verdeiro encontra resistência em ser o vetor de produção desses consensos necessários para a convivência política em direção a um projeto de sociedade e futuro. E essa autocrítica nós precisamos fazer! Não sei, mas parece que estamos longe de uma “razão comunicativa” como propõe Habermas, mas talvez esse seja um dos caminhos possíveis. Gostaria de saber o que você pensa a respeito. Enfim, continuemo o diálogo! Obrigado pela intervenção Gerson e perdoe se a resposta não saiu a altura da sua brilhante e difícil questão! Abraços cordiais!
      Aruanã.

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